terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Registos de Cinema XXVI, Sono de Inverno de Nuri Bilge Ceylan, 2014


Inverno e hibernar têm semelhanças fonéticas como se hibernar fosse a acção do inverno; Sono pode ser um dos sinónimos do estado de hibernação, dormir pode ser hibernar ou vice-versa.

A acção de Sono de Inverno decorre entre poucos quilómetros de várias distâncias, distâncias que os homens correm, vencem a pé quando necessário, sem um esforço tão grande que os impeça. Essas poucas distâncias são a geometria de uma pequena sociedade isolada do mundo, de um mundo de que recebe os seus ecos mas sem a sua presença, um mundo distante que pode quase ser irreal, de sonho, ou de perdição. Na aldeia vive-se a realidade das rotinas e dos conflitos, vive-se a presença do tempo lento e dos corpos que se enfrentam, quase sem protecção e que se contêm no instinto da sobrevivência. Um jogo a roçar os limites da provocação e do poder contra a tolerância, a indiferença e a abdicação de si. Vive-se e representa-se no afã de personagens que não querem dar-se à luz, mas que persistem nas suas máscaras, jogando e sonhando sem qualquer desejo de realidade ou concretização. Vidas suspensas. Em hibernação.

O inverno é a capa, feita de neve, de uma neve que dissolve e apaga a humanidade da crosta terrestre e a remete ao útero primitivo, à gruta, às grutas dentro das quais as casas da aldeia são construídas. A neve é a rede que mantém agrupados os prisioneiros do tempo e do espaço infinitos. A casa é o lar, o fogo, a protecção. Perdê-la seria perder tudo, sobretudo, naquele inverno e naquela neve que apaga e branqueia as diferenças.

Mergulhadas no isolamento, as personagens irrompem da escuridão e da dissolução, através das palavras o sono é vencido pela vigília, o diálogo que une os seres convoca as memórias e a vida. A palavra supera o sono, o esquecimento e a morte. Como uma luz que alumia por dentro, a palavra, a sucessão de palavras, as frases, os diálogos, propõem uma revelação, uma consciência e o jogo inicia-se.

As palavras servem para compreender e humilhar, para se compadecer e para acusar, servem para cada um se dissimular, ou se queixar; servem para trazer o que se esconde na alma para a comunhão da mesa. Um personagem, velho, vai totalizando os diálogos: com o aventureiro que viaja de mota sem destino; com o Imã submisso que não se consegue afirmar e se desfaz em desculpas e mortificações; com a irmã que se escondeu da vida e do mundo mas vive arrependida de ter deixado o marido; com a mulher que desiludiu sem a ter querido iludir e que o recrimina pela sua solidão; e, finalmente, com a tertúlia do seu amigo que o recebe em sua casa e com quem fica com outro conviva a discutir a consciência humana, a sinceridade dos homens e a consequência entre pensamentos e actos. Por fim, regressa a casa e senta-se a escrever para a eternidade a História do Teatro Turco.

Estará Nuir Bilge Ceylan a escrever uma metáfora sobre a Turquia actual? Seja pela hesitação do mundo rural perante o mundo urbano; seja pela abdicação da viagem; seja pelo isolamento consentido, procurado; seja pela persistência de uma cultura clássica universal (o teatro) e de uma tradição ancestral (religião) que não se querem rejeitar nem se conseguem abraçar?

Pretenderá ir mais além de um drama de costumes ou de um conto moral, à la Rhomer? O homem recrimina a mulher que recrimina o homem no choque dos seus imaginários e das suas expectativa quase sempre frustradas; o senhor e o escravo digladiando-se através de terceiros – o filho do segundo ou  a mulher do primeiro – numa luta pelo poder moral; o Imã que, fiel à paz e à concórdia, está sempre pronto para o sacrifício do seu orgulho ou da sua vontade; a criança que ferve em ódio inculcado pelo pai que se deixou humilhar por não se deixar humilhar; a irmã e o irmão reunidos na casa-mãe interceptando pensamentos e uma certa educação que seguiu caminhos diferentes e até antagónicos mas que mutuamente se provocam pelo sentimento do que perderam; os amigos numa tertúlia que o vinho vai aquecendo até ao ensaio de um conflito que o corajoso vinho faz brotar mas que logo se apazigua numa evasão ou num vómito; ou o regresso a casa sem glória desistindo de pelejas e futuros irreais mas ausentando-se do fluir do tempo para lhe deixar uma História do Teatro Turco.


Ou estará concentrado nos conflitos humanos, mais do que na sua moral ou nos costumes que lhe dão sustento, conflitos que são o fulcro de toda a humanidade. Por vezes parece que estamos a ver Ingmar Bergman, o mestre sueco que da periferia norte da Europa se vem encontrar com Nuir Bilge Ceylan da periferia do Sul. E mais do que os interesses das pessoas e dos seus conflitos entramos no conflito das ideias que as personagens encarnam: o amor, a consciência e o castigo. O amor surge no debate sobre o castigo. Castigar é impedir a consciência do arrependimento; dar a outra face é permitir a iniciativa da emenda, da correcção introspectiva e definitiva. O amor não pune, deixa descobrir, sem pressa.

domingo, 30 de junho de 2013

Os dias felizes e os outros


A rotina desaparece e começa uma vida nova. Passado o tempo em que viver tinha como objectivo repetir os dias, os dias felizes e os outros, instala-se uma nova ordem. Ou será desordem?
Todos os dias passam a ser diferentes como se o presente não ligasse passado e futuro. E o pretérito objectivo desapareceu.
Viver passa a ser esperar. Esperar pelo dia em que de novo se possa regressar à rotina de repetir os dias, os dias felizes e os outros, porque ambos são nossos, e para que, assim, a morte quando chegar, recolha o nosso sorriso em vez da nossa incompreensão.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Registos de Cinema XXV, To the Wonder de Terrence Malik , 2012




1. Neil (Ben Affleck) e Marina (Olga Kurylenko) viveram em Paris, uma paixão arrebatadora e passearam-se idilicamente no Mont-Saint-Michel, cuja abadia é denomindada: La Merveille. Mais tarde, nos EUA, para Neil, cuja profissão é detectar sinais de contaminação em terrenos rurais, a paixão entrou numa rotina sem esperança e a relação perde o sentido. Disso se apercebendo, Marina, procura Quintana (Javier Bardem), um padre católico que se interroga permanentemente sobre a sua relação com Deus. Marina decide regressar a Paris sem uma aparente razão aproveitando o facto, técnico, do seu visto estar a expirar e Neil não ter decidido casar com ela. Sozinho, Neil reencontra Jane (Rachel McAdams), de quem tinha gostado na juventude, mas também com Jane, Neil, não foi capaz de se compromoter e deixaram-se. Marina, entretanto regressa dando-se-lhes uma segunda oportunidade mas, as promessas do primeiro amor depressa se dissiparam e Neil, no momento de se comprometer com o futuro, apesar de se terem casado, hesita em ter um filho e Marina destroçada entrega-se ao primeiro homem conhecido com que se cruza e lhe deita um olhar. Esta a sinopse de To the Wonder. Dois homens em sentido oposto, um que se deixa tomar pelo vazio (Neil) e outro que luta pela vida contra o vazio (Quintana o padre). Duas mulheres (Marina e Jane) que procuram uma realização, uma concretização, um comprometimento e que são abandonadas.


2. Seria importante relacionar La Merveille (a abadia do Monte de Saint Michel na Normandia), com a abordagem do Amor e da Verdade ensaiada por Terrence Malik. Primeiro porque é explícito na escolha do título do filme, depois porque sendo um dos cenários do filme e ficando como título há-de ter um significado concreto: há na “Maravilha” um duplo sentido humano e divino que está presente nesta obra de Malik. Em teoria, explicando La Merveille poderia explicar-se o filme.

La Merveille é um lugar que ganha importância com a implementação do cristianismo na Europa como lugar de oração e estudo. Centro de peregrinação com raízes religiosas ancestrais, La Merveille, foi sendo construída como uma porta que liga a Terra e o Céu: a sua arquitectura no estilo gótico flamejante, é em si mesma a transformação de um macisso rochoso numa abadia monumental enriquecida por detalhes ornamentais de grande delicadeza.

É este carácter diria mágico que faz de La Merveille um lugar denso psicologicamente e propício a uma transmutação interior: como se cada um fosse tomado por um encantamento, que o fizesse tocar os céus. Depois dessa experiência, o mundo, é uma longa provação. Como se entre as pesquisas geológicas infernais de Neil e o enlace amoroso com Marina em La Merveille se deambulasse entre o céu e o inferno.

3. To the Wonder, que recebeu em português o título A Essência do Amor, é uma procura do Amor verdadeiro e da Verdade em si mesma. O Amor verdadeiro é o que dá o braço à Verdade, é o que, não presume resumir-se aos falíveis sentimentos humanos mas que procura dar a esses sentimentos um destino superior à sua simples dissolução. Fala-nos do Amor humano que se declina do Amor de Deus e que a ele se terá de manter fiel. Diz-se interrogando:
— Que Amor é este que nos ama, que vem de parte nenhuma, de tudo em redor, do céu, das nuvens? Tu também me amas?

O Amor de que todos participamos não nasce em nós, não nasce em cada um e depois é trocado entre todos. O Amor é uma relação de que todos participamos e que assume formas diferentes nas relações sem que deixe de ser o mesmo Amor. É sempre participação de uma realidade que nos transcende. Da nossa condição, então, não temos a plenitude da experiência amorosa e o nosso carácter, a nossa incompreensão, a nossa ignorância exprime-se no bloqueio à corrente do amor, exprime-se no egoísmo, no isolamento em que nos afirmamos mas em que, depois, ficamos sós e sem Amor.

O padre Quintana, vive a consciência desse bloqueio, acredita, dedica-se, mas algo nele o impede da experiência empática com Deus, com o Amor de Deus. Quer ver mas não vê e nas suas homilias, no seu esforço de compreensão e de comunicação, não foge às questões e enfrenta-as e diz que se por alguma razão não sentires o Amor então obedecerás, porque quando Cristo diz Amarás, não está a sugerir mas a mandar que se ame, a mandar cada um impor-se a essa necessidade de amar para lá da sua compreensão, pois só assim poderá encontrar o Amor e não, desistindo porque não sente.

O Amor verdadeiro é comprometimento, diz Quintana, e essa Verdade do cristianismo, que é todo ele comprometimento e empenho, dedicação e esperança, não poderia dizer-se outra coisa sob pena de chegar à mesma conclusão de Anne: se isto não foi Amor então não foi nada, foi apenas prazer e luxúria. Sem verdade isso é vício. É aqui que se dá o carácter transfigurador do Amor: tudo se pode sempre reduzir a nada, tudo se pode sempre reduzir ao vício, mas a consciência permite-nos viver os sentimentos com uma finalidade para além de apenas sentir, com uma finalidade que torne os sentimentos robustos e cada vez mais fortes, e isso é o comprometimento, o empenho, a dedicação, a esperança de uma realização íntima e transcendente, pessoal e universal. Um comprometimento mútuo em vez de um mútuo uso. Porque estaremos mais disponíveis para sermos usados mutuamente em vez de procurarmos ser mutuamente comprometidos?

Nas suas deambulações, porque as personagens neste filme parecem sempre deambular numa espiral interior, surge a segunda pergunta chave do filme: onde estamos quando estamos lá? Ou, o que é verdade quando estamos lá em cima? Esta interrogação liga a Verdade e o Amor, ou seja, põe a interrogação sobre o que seja a Verdade numa perspectiva não humana mas divina: se soubermos o que é a Verdade, o que será essa Verdade? Daqui apenas a podemos imaginar, sonhar, ou ouvir e não podendo saber o que é a Verdade pela nossa condição actual, podemos pela oração e pela reflexão na Verdade revelada ir desvelando e desencobrindo esse Amor que nos parece distante de nós e quase desumano, caso não fosse para nos dar a plenitude da nossa humanidade que ele existisse.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Registos de Cinema XXIV, Before Midnight de Richard Linklater , 2013




1.
O tom geral do filme e a representação parecem ensaios em que os actores, estão tão familiarizados com os seus papéis, que os representam com excesso de à vontade e com pouca densidade, por isso mesmo de não representarem os diálogos, mas os dizerem. Estes parecem ditos em contra-relógio, disparados sem os tempos próprios de reacção nos quais os actores fariam as personagens construir respostas pensadas e provocatórias que apenas são verosímeis caso haja o tempo de ouvir, o tempo de digerir e inventar e o tempo de responder. Os silêncios são ocupados pela resposta pronta e previamente definida.

Há uma informação e uma riqueza de assuntos ao longo do filme que parecem desadequados para as personagens, sobretudo de Jesse (Ethan Hawke). Julie Delpy parece ter um papel, o de Céline, mais feito à medida da sua representação, sempre a tentar ser muito natural, parecendo quase que a personagem e ela própria estão em perfeita sintonia. Denota um prejudicial overacting. Já Jesse parece ser sempre superficial, demasiado exposto para um escritor, com opiniões coladas à cultura da citação, com ideias para livros sempre muito pretensiosas como se tudo o que lhe vem à cabeça fosse interessante ou genial. Essa personalidade sem filtro não parece ser adequada a um escritor, muito menos aquela partilha com desconhecidos, amigos recentes mas desconhecidos, das ideias que vai tendo como se um autor não guardasse para si e protegesse, a surpresa da narrativa, sobretudo, entre pares, como é o caso.

2.
Entre vários temas secundários, o tema central é a relação de Céline e Jesse, num momento em que se abre um conflito enraizado nas diferenças de quem não pode, pela sua condição (Jesse tem um filho que não vive com ele e por quem desenvolve um sentimento de culpa / perda quando ele regressa a casa da mãe depois das férias com o pai), partilhar a totalidade dos seus problemas, dos seus sentimentos e da sua forma de encarar o futuro. Um sentimento não partilhado, um problema individual, ou uma expectativa que não é comum, podem ser falha que dá origem à separação porque isolam um em relação ao outro.

Existem muitas banalidades para alimentar as questões de género e o filme não as dispensa: o chorrilho das razões de queixa com os pormenores do dia-a-dia, como a tampa da retrete para cima ou para baixo, as tarefas de cada um nesse dia-a-dia, os esforços de um e que presume que o outro não repara, etc. A psicologia feminina e a psicologia masculina em vez de actuarem nas vantagens da diferenciação colidem na tentativa de se homogeneizarem e, daí, o conflito. Os conflitos não resultam de pessoas diferentes quererem objectos diferentes, mas de pessoas diferentes quererem o mesmo objectivo. A partilha de objectivos convoca a diferença e não a igualdade, a partilha de objectivos convoca a complementaridade e não a mesmidade.

A questão é, então, perceber se houve, na relação que termina, um mesmo objectivo ou se apenas houve uma disposição interior para representar numa realidade ficcionada que era a de haver algo em comum que era partilhado. Que factor desencadeou essa disposição e que factor a abortou? As banalidades do dia-a-dia são uma mentira útil em que não se é sério consigo mesmo se as invocarem como motivo de queixa relativamente ao outro.

Os papéis feminino e masculino nas relações são muitas vezes assumidos, inicialmente, de uma forma que se vai transformando e quase inverte, posteriormente, com o passar da novidade, com a instalação das rotinas e com a manifestação continuada das personalidades. Percebe-se, muitas vezes, que os papéis inicialmente assumidos não sendo forçados alimentavam-se de uma assumpção deliberada que acaba por se deixar de alimentar. Ou seja, tudo o que era inicialmente assumido e aceite, quebrado o encanto, é dito afinal como tendo sido tolerado, ou seja, perdendo-se a disponibilidade para amar, tudo passa a ser visto ao contrário. O outro que era amado tal qual era passa a ser o que impede o mesmo de ser aquilo que o outro é. Explicando: a mulher  que fazia com doçura e prazer determinadas tarefas, de súbito, passa a criticar o homem por ele não fazer também aquilo que ela faz, que afinal essas tarefas eram penosas e ela fazia-as com sacrifício pessoal e preferindo delegar (coisa que depois não seria verdade, pois apenas quer que se reconheça a importância vital e suprema das suas actividades em prol da família e dos outros), e passa a dizer que o que ela queria mesmo fazer era fazer aquilo que ele faz (apesar de depreciar e fazer equivaler à nulidade essas actividades ociosas) e irrita-a vê-lo a fazer aquilo que ele faz porque estando ele a fazer esvazia a possibilidade de estar ela a fazer. O conflito, diríamos, combate, não é racional. É emocional e tem a ver com as perdas irreparáveis que todos carregamos e não conseguimos superar. Vivêssemos em paz connosco próprios e não haveria conflitos que nos atormentassem.

O anfitrião da casa de férias, um velho escritor que aqui se pretende que simbolize a sabedoria, aconselha os seus convivas sobre a frase inscrita no frontão do Templo de Delfos "Conhece-te a ti mesmo".

3.
Na cena final procura-se um fim feliz. Considerando as características de Céline o fim feliz é consistente, ou seja, conjuga-se com a personalidade inconsequente de Céline, mas não é o corolário da conversa que manteve durante a noite com Jesse. O amor estava impossibilitado com tudo o que se disse. Jesse sai do quarto onde Celine o deixou sozinho e vai sentar-se junto de Celine tentando demovê-la da decisão de não o amar. Ela decidiu não o amar. Isso não é coisa que se decida. Ama-se ou não se ama. O resto são indecisões de diversas fontes e motivos nascidas e criadas nas insinceridades que temos para connosco próprios. Mas sobre amar, se há dúvidas, então, não se ama.

Teríamos assistido, no final do filme, ao fim de uma relação. O que se disse fez nascer dois estranhos, duas pessoas que apesar de toda a intimidade e confiança se tornam de súbito, um para o outro, estranhos. Como se dentro do outro houvesse um ser inesperado que sai de uma ignorada latência para a afirmação e esse ser é um estranho. Aí, percebe-se que o amor era afinal, apenas, a coincidência de investimentos pessoais numa ilusão que só poderia durar o tempo da vontade dessa coincidência. Essa coincidência começa com um desejo mútuo, depois torna-se numa cerimónia , depois numa hesitação desgastante alimentada por um certo incómodo moral e, por fim, dá-se a ruptura, feita de separação e rejeição como se da libertação de uma toxina se tratasse.

Podia ser uma história das imitações do amor. Imitações num tempo em que se vive só para a imagem, para a superficialidade e para o vício. O amor, ou antes, a sua imitação é mais um prêt-a-porter sem verdade nem responsabilidade. E sem respeito genuíno pelo outro. O outro não é acolhido no coração, é apenas um invasor a quem, por qualquer interesse, não se dá luta temporariamente. Por medo da solidão, por luxúria, por conveniência, por muitas razões, até razões insondáveis.

Pudesse cada um conhecer-se verdadeiramente a si próprio e talvez pudesse, então, saber o que é e não aquilo que presume ser. Pudesse cada um conhecer-se a si próprio e talvez descobrisse que os actos que presume sérios, verdadeiros e sinceros possam ser oportunistas, interesseiros e até vazios como os daqueles que despreza. No filme de Richard Linklater, como afirmamos antes, tudo acaba numa pieguice irreal. Tudo estava acabado quando a primeira dificuldade abriu não um pequeno roço mas uma fenda cósmica. Ambos transportavam essa fenda cósmica apenas não lhe davam importância para melhor enfeitarem a sua simulação do amor.

Sendo quase natural, o Amor, é quase impossível pelo menos enquanto não houver dentro do fundo de nós um mínimo sentido da heroicidade que é aquele que nos ensina a ter coragem de morrer pelo outro.

Dois apontamentos sobre a complexidade



O efémero alimenta o dia-a-dia, por exemplo: de notícias. Mas cada um, apesar dessa ilusão informativa, vive numa corrida de fundo que o leva onde queira ou não queira, para onde saiba ou não saiba, como a doença, por exemplo, que se vai lentamente formando até se tornar um problema no momento da sua manifestação. Será a isto que chamamos complexidade?, a dificuldade que nasce da relação entre o fluxo da vida e a nossa consciência reflexiva?

...

Há um curso natural que o homem procura descortinar, até à presunção da descoberta, o elemento primordial a partir do qual pudesse construir a mesma realidade em que a vida se manifesta, expressa e se dá. É a esperança dos que tomam o mundo físico e a fenomenologia como sendo toda a realidade. É a esperança dos que consideram que o mundo material é todo o mundo e têm como fim demonstrar que não há espírito nem transcendência mas apenas matéria (ainda por definir o que seja e até que haja) e imanência.

Há, também, um curso especulativo, em que a actuação do homem vem do espírito e o homem actua sobre o mundo físico e fenomenológico, não para o manipular e por ao seu serviço, mas para o compreender e interpretar e assim dar um sentido à sua vida inteligente, à sua consciência e à existência em que participa. E, também assim, dar à natureza uma finalidade cujo estado e condição não permitem mais que repetir-se infinitamente sem progresso moral e intelectual como se nada significasse.

É complexo, perceber que há um curso natural e um curso especulativo e que tudo depende da realidade e veracidade que for atribuída ao pensamento que é afinal onde tudo se decide quer para uns quer para os outros. Por isso surgiu a filosofia, e a sua complexidade está mais na noção de humildade, de nos despirmos para atravessarmos o rio, do que em todo enciclopedismo coleccionista que possamos armazenar em nós e fora de nós.


domingo, 9 de junho de 2013

Registos de Cinema XXIII, Searching for Sugar Man de Malik Bendjelloul , 2012



O que é um herói?, perguntava-me há dias, tentando encontrar um significado para os actos humanos, um significado que fosse determinante para os distinguir de simples acções. Conhecendo a história de Rodriguez a resposta poderia ser: o anti-herói!

Num tempo de espavento e pigmeus empoleirados, de pseudo-vates em pose definindo com rigor os 3/4 de torção do seu busto no palco da televisão ou de auto-proclamados pensadores pertinentes detentores de uma moral considerável e a ter em consideração, Rodriguez, o anti-herói, é tudo o que os outros queriam parecer ser e ele próprio, do alto da sua autoridade e do seu real talento, não parece. Mais, não parece nem aparece, porque se apagou, indiferente ao mundo, e se dissolveu entre operários tarefeiros vivendo de anónimos biscates e trabalhos pesados que ninguém quer fazer.

De trolha a estrela rock, herói de um país (Africa do Sul) que não conhecia, Rodriguez, entra e sai do seu estatuto com a mesma serenidade, a mesma humildade, a mesma irradiante simpatia e o mesmo acolhimento do próximo. É assim que deixa a sua casa de sempre em Detroit depois de 20 anos afastado dos palcos para ir dar 6 concertos esgotados na África do Sul, perante um público em êxtase que descobriu que afinal não era órfão de um pai espiritual que nunca conheceram nem presumiram poder alguma vez vir conhecer, mas que lhes tinha legado as cores dos seus sonhos.

O primeiro concerto em Cape Town é um assombro, não por uma histeria do público, como a que causavam nas adolescentes os Beatles ou Elvis Presley, mas pelo preenchimento de alma que a sua aparição lhe concedeu, como um milagre ou uma bênção que sobre ele se derramou. O impensável estava, então, a acontecer e Rodriguez abraçou o público, beijou-o e devolveu-lhe um novo sentido para a palavra esperança.

Depois voltou para a sua pequena casa de sempre sem se preocupar em “capitalizar” o seu sucesso. Sorridente, com a sua guitarra e os seus trabalhos de restauro de casas.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Registos de Cinema XXII, Et si on vivait tous ensemble? de Stéphane Robelin, 2011



Sendo parte comédia, parte drama, o que normalmente se pode traduzir por brincar com coisas sérias, “Et si on vivait tous ensemble?” é um filme triste. É de uma tristeza ainda mais triste porque trata com superficialidade temas como a velhice e a dependência, amizade e a traição, o altruísmo e a vaidade.

Há nas personagens uma auto-suficiência que as impede de uma visão da vida para além dos limites do seu interesse imediato, incluindo esse interesse de viverem todos juntos, por uma mera conveniência: preferem estar juntos do que a ser ajudados em impessoais lares de idosos.

As personagens procuram viver o presente e nisso são optimistas. Vence-se cada dia com o prazer possível que é, naquela idade, de certa forma, resignado a um passado que já não se pode mudar. Um prazer que é, no presente, a sensação de viver do balanço das memórias que se vão adensando com a ultrapassagem de certa curva da idade. O tempo, essa irremediável sucessão, deixa o passado ir-se instalando e esse passado, doce e irrepetível, vai tomando lugar, preenchendo o espírito e toldando a objectividade à medida as faculdades desaparecem e as obsessões, antes domadas pela educação e pela capacidade de apagar para evoluir, se soltam. 

É desses passados, aparentemente esquecidos que se desenterram baús abandonados que, por vezes, são caixas de Pandora, prontas a infernizar vidas mergulhadas em águas paradas, profundas. Vidas que deixaram de acreditar no milagre que perderam a ingenuidade e deixaram de lutar, preferindo a sonsa gestão diária das aparências, dos prazeres mundanos e das alegrias vazias, apenas convencionais.

O que as amargura e entristece?, viver na solidão para que os seus actos as remeteram. A consciência de um certo vazio existencial que emerge da cumplicidade com o mundo desiludido e indiferente ao amor e à ternura, à verdade.

Que vale, de repente, alguma coisa a que dedicamos o nosso amor e a nossa paixão, em que confiamos como se confiássemos em nós próprios, e que, subitamente, vemos espezinhada pela traição, pela indiferença e pelo egoísmo? Um enorme vazio instala-se. Afinal nunca nada terá sido aquilo que pensáramos que era, e as pessoas que à nossa frente sorriam e nos falavam não eram elas mas outras que, sem verdade nem coragem, atrás delas se escondiam sem nos falarem nem nos sorrirem.

As personagens de “E se vivêssemos todos juntos?” parecem ser, no final, tolerantes o suficiente para tudo ultrapassar depois de um breve choque. Mas são personagens de um filme em que o relativismo e a superficialidade imperam. Porque não cada um fazer só o que lhe apetece e ter maçadoras responsabilidades que implicam sacrifícios e abdicar de nós próprios por valores superiores? Aqueles que permitiram existirmos num mundo em que pelo menos há a ideia de civilização, se é que isso importa.

sábado, 9 de março de 2013

Hipnos e Morfeu



Deitados na cama ou até adormecidos num sofá , repetimos diariamente a experiência de morrer. Mas a morte de quem se reclina e se deixa voluntária e docemente prostrar, acredita que, de manhã, uma luz auroral lhe entrará pelo quarto e o fará acordar como quem ressuscita para a vida consentidamente interrompida.

O sorriso com que se entra nesse irmão da morte que é o sono, é traçado pela confiança de que a ressurreição é certa e trará consigo uma certa renovação da própria vida que por horas se interrompe.

Mais enigmático ainda é, por se saber que, muito provavelmente, se acorda de manhã, e, então, se regressa à vigilância, alguém se deitar tranquilamente apesar de ficar à total mercê de qualquer acto que possa aproveitar essa suspensão da atenção, da vigília e da guarda. Seres que vivem um terço do tempo da sua vida à mercê do que os possa submeter, tomar, raptar, matar, etc., conseguem, ainda assim, repousar a cabeça numa almofada e entregarem-se nos braços de Morfeu (sonho), filho de Hipnos (Sono).

Intrigante mistério este, de tanto procurarmos defesas, seguranças e garantias que nos preservem a vida e, em cada dia, repetida e previsivelmente, nos entregarmos, serenamente desprotegidos, no convívio  íntimo com o mais perigoso – o mal – e o mais trágico – a morte.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Registos de exposições, Inez Teixeira, Coração Aventuroso, Fundação EDP, Museu da Electricidade, 2013



Num primeiro momento, pensamos visitar um mundo que já antes nos tinha sido apresentado, mas à medida que avançamos e fixamos a nova série de pinturas e desenhos de Inez Teixeira mais nos deixamos envolver em vários séculos de pintura e de literatura. Distingue-se da banal pintura contemporânea que pretende ser apenas contemporânea e para isso recorre às estratégias de representação e aos temas que fazem a actualidade dos media. Aqui é diferente, a sensibilidade informada pela longa e detida reflexão de temas universais, cruzada com a contemplação da arte que já superou a provação do tempo, desde as formas pictóricas e esculturais às literárias, ou seja, as formas poéticas e não apenas estéticas, essa sensibilidade culta introduz um grau de dificuldade interpretativo que não inviabiliza a estesia mas a ela não se reduz.

Há na arte contemporânea uma espécie de truque que leva a incluir num mesmo saco, numa mesma intencionalidade, toda e qualquer manifestação que se autoproclame artística. A presunção democrática garante depois o direito ao espaço público. A mesma presunção democrática igualiza depois as obras e os artistas não deixando descolar diferenciações desigualitarizantes. A natureza do espaço público contemporâneo é essa mesma pseudo-igualdade e essa pseudo-licença à participação fazendo do número e da quantidade símbolo e categoria, valorizadores das intenções e construtores de uma verdade aclamada por unanimismos e consensos. Porém, a natureza da arte autêntica é desigualizar, singularizar e diferenciar a criação individual.

Feito este aviso sobre uma suspeita antiga sobre o baixo valor e até o pouco interesse intelectual da arte contemporânea e dos seus epígonos, regressamos ao novo conjunto de obras de IT que distinguimos do discurso temporal da contemporaneidade sem lhe atribuirmos um anacronismo nem uma necessária expressão do seu contrário. Em Coração Aventuroso, título retirado à obra homónima de Ernst Junger, Inez Teixeira aventura-se numa trama de abstracções quase figurativas, permanentemente sugestivas e incompletas, suscitando um “trabalho” incessante de reconstrução de aparências numa procura de lucidez, identidade, reconhecimento e, finalmente, conclusão do que na pintura ficou em aberto. Este trabalho a meias com o espectador, observador atento e interactuante, abre um campo de memórias e de graus de realidade, que acabam por regressar a um sempre mesmo
tropo: o regresso ao antes do princípio, o regresso ao processo da criação: a libertação de um caos magmático, elástico, ainda hesitante e moldável, mas já estruturado, uma espécie de pré-nascimento das formas que cingem, delimitam e definem os corpos, realidade indivisível e sagrada, antes do golpe perpetrado pela filosofia (e a ciência) moderna.

Esta visão pré-criacionista, esta ebulição do elemento natural na luta pela formação, pelo direito ao corpo, pelo direito à alma, representa um apelo, ou pelo menos exibe um sinal de alerta para a necessidade de rever tudo e recomeçar, como numa aventura vivida à procura do amor – com carne e sangue, alegria e sofrimento.

Há uma noite (negro) de onde as formas parecem surgir iluminadas e retorcidas, atraídas por uma luz que as impulsiona para se formarem, para nascerem – um movimento que as perpassa e lhes parece dar um destino. Aquilo que parece ser uma revolução da natureza assume-se, assim, antes, como uma dramaturgia espiritual, uma inquietação da alma e uma expressão da luta pela presença, pelo aparecimento, pela vida. Fluindo em curvas e contracurvas, destacando ou esbatendo formas em fundos que ora são negros ora parecem ser brancos, desenhando estas linhas que são em si mesmas transfigurações permanentes sem cair no pecado ou na antecipação da linha recta, a pintura pode ser o que todos quiserem sem que deixe de ser o que é.

Muitos se hão-de entreter a olhar e a tentar reconhecer as formas que conhecem. É um processo comum aos homens por ser um acto espiritual: traçar sobre o aparente caos uma linha que organize em formas cognoscíveis e inteligíveis uma semelhança sobre a qual se possa dizer o que é. Quantos não o fizemos a olhar uma parede com salitre ou as nuvens no céu? Mas também reconhecerão citações , creio que involuntárias, de Goya, William Blake, Yourcenar, obviamente Ernst Junger, entre outros.

Trata-se de uma arte que faz pensar, coisa arredada de qualquer expressão artística dita contemporânea cujo único objectivo é o reconhecimento epidérmico pela semelhança a qualquer coisa da qual se tem também um conhecimento apenas epidérmico. Este fazer pensar e cumulativamente sentir é coisa, diria, para iniciados, mas a autora não terá essa pretensão, embora a subtileza da sua sensibilidade tal induza e obrigue.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Partir




Partir?, ninguém parte, apenas constrói o muro do esquecimento. Chega a parecer uma ficção surrealista a nossa tendência para sobrepor pessoas diferentes numa mesma conformidade, num mesmo contorno, numa mesma expressão. Os que amamos vemo-los sempre crianças, vemos sempre a suspensão dos seus sonhos por vir, mais tarde vemos a sua luta contra o desencanto e, por fim, a resignação nalgum porto a que chamam sorte e onde tentam encontrar uma racionalidade que justifique tantos projectos desfeitos, tantas expectativas não concretizadas, tantas desilusões.

Se procurarmos bem, nunca teremos de nos queixar, se nos compararmos com os outros, encontramos muitas vantagens em sermos nós, porém, por mais que nos exercitemos em nos imaginarmos outros, vistos de fora, sabemos que estamos amarrados a nós e só a nós, sem poder ser outro que não o outro de nós próprios, e nenhum consolo nos pode atenuar as dores nem nenhuma tragédia pode roubar-nos a alegria. A individualidade outorga-se no corpo e na carne, não há vidas emprestadas, nem vidas aliviadas, nem felicidades por interposta pessoa.

Lembro-me de pensar que o mundo era o que eu via e o que eu imaginava que seria a vida que as outras pessoas me contavam. O meu mundo mais o delas faziam o  mundo que para mim contava. O que tinha racionalidade, totalidade, universalidade. O resto eram subúrbios e esboços da realidade que não chegavam a contar. Um dia, as outras pessoas começaram a morrer e com elas levaram parte do mundo tal como eu o imaginara, iria haver coisas que não iria chegar a ver nem conhecer. Cada um que partia levava consigo uma parte das minhas esperanças e um convidado do meu banquete, até que a mesa ficou quase vazia. Com os lugares postos expectantes. Ninguém parte!

O tempo passou, a juventude passou, parte da idade adulta já lá vai, e sem querer mascarar a velhice com uma surpreendente e patética juventude, recuamos no espaço até aos lugares da memória. Espírito e memória é tudo o que nos resta ainda que a carne ainda esteja vigorosa, os músculos reactivos e o ânimo vigilante. Espírito e memória são o que nos resta, aliás, são o que conta no regresso ao essencial, no regresso à vida com perspectiva, defronte do crepúsculo libertador. David Bowie pergunta-se: “Where are we know?”, regressando ao passado, e nós com ele, porque ele também é parte do nosso passado.

Mas os nossos passos já não são os passos de quem tem o direito ao presente, são sim os passos de quem passa pelo presente para ir a outro lado porque este presente já não lhe interessa, já não lhe pertence, está repleto de cadáveres imobilizados, toda a memória de um tempo perdido, ou temporariamente suspenso, porque não há esquecimento!, senão o voluntário. Aquele que precisamos de impor para viver sem sobrepor os amantes, as idades, as obras, os lugares e tudo – o tempo é o escalonamento do esquecimento. Os nossos passos, na fronteira da realidade a que pertencemos/não-pertencemos, reconstroem no espaço o que emerge da dissolução do tempo: a presença absoluta. Essa presença da vida inteira que não sabemos se é o inferno se é o paraíso. Depende do que tivermos inscrito na nossa carne, no nosso corpo, na nossa indissolúvel individualidade. Sem desculpas.